sábado, 11 de dezembro de 2010

Homenagem à Cecília de Melo

(Aqui se expõem as palavras proferidas pelo José Machado no dia 11 de Dezembro, no cemitério de Monte d'Arcos, em Braga, no descerramento da lápide com que o grupo prestou sentida homenagem à Cecília de Melo, fundadora do Grupo Folclórico de Professores e falecida há um ano)

Algumas palavras sobre este nosso acto de amar

Caros amigos, o que hoje aqui fazemos é um compromisso com a nossa memória de pessoas e de projectos de trabalho, aquelas foram, e são, todas as que se interessaram por este objecto de estudo que é a cultura popular tradicional e aqueles, os projectos, foram, e são, todos os grupos ou todas as melodias, ou todas as formas de trajar que se mobilizam para a nossa identidade local e regional e nacional.

Este assunto «menor» é a nossa maior consumição enquanto associação e só tem sido enganadoramente mantido porque se tem distribuído um pouco por todos nós e é esta nossa incompletude que nos vai alimentando a curiosidade. Neste correr da pena, a nossa colega e amiga e fundadora Cecília de Melo teve sempre toda a culpa da incitação e toda a responsabilidade pelo nosso relativo sucesso.

Outros que já partiram os devíamos agora lembrar nesta partilha de riscos e de resultados: o Brito que foi um percurso raro de entusiasmo, o Teles que foi toda a nossa tenacidade de propósitos e o Borralheiro que já levava um balanço imparável de produção e de intervenção.

Da Cecília nos haveremos sempre de fixar neste exterior que é toda a nossa alma: esta modalidade de tomarmos a roupa por algo que nos transcende enquanto géneros e enquanto sujeitos da animação cultural. Todo o reino do efémero, os trajes, foi a sua margem de trabalho, desde os atavios de decoração, sempre os últimos a pôr mas os mais perseguidos no processo de produção, até à definição das peças finais com que nos temos representado outros.

Deste efémero já outros quiseram fazer marcas de perenidade identitária e nós nisso temos consentido - já que é esta a linguagem formal e oficial que tem andado ligada aos grupos folclóricos -, mas cada vez mais vamos estando conscientes de quanto é importante sabê-la sustentar e dar-lhe a compreensão requerida, sem que se caia na mera representação teatral de recorte de personagens.

A Cecília de Melo era uma insatisfeita, ao mesmo tempo que uma guardiã do templo: o seu entusiasmo pelas roupas, pelas modas, pelos perfis ou silhuetas, pelos pormenores ou pelos tipos, era um acumulado cultural desde a sua educação, um saber de família e uma arte de profissão. Não tivesse sido ela a dedicada professora que foi, com uma formação pluridisciplinar muito vincada pelas artes visuais e pelas tecnologias, e não teríamos beneficiado tanto da sua sabedoria e da sua inspiração. Os seus trabalhos, os trajes, os lugares onde se conservam seus olhos e suas mãos, aí os temos para usarmos, para repetirmos, para renovarmos, sentindo o seu pulsar dedicado, a sua preocupação de rigor, a sua adaptação de corte, o seu conselho de enriquecimento.

Os trajes têm sido absolutizados e, se calhar por via dessa redução, começará aí o seu abastardamento e a sua trivialização, mas essa não era a visão da Cecília de Melo que os via como marcas de um tempo histórico imprescindível para a contextualização do desempenho cultural, mas que os via também como produtos da mão e do cérebro para um corpo concreto, de modo a espelharem bem-estar, comodidade, orgulho e vaidade, para uma enunciação dos equilíbrios ou dos desequilíbrios culturais entre o tempo e os costumes, entre as memórias e os estados de alma.

Se a roupa é sempre uma presença teatral, essa presença serve um discurso de afirmação de valores pessoais e comunitários, não para afirmar a superioridade de alguém ou de uma região ou de uma época, mas para prevenir as distracções e as confusões de que tudo serve e tudo está bem quando se anda a fazer de conta. Os trajes folclóricos eram para a Cecília as vaidades culturais das outras «pequenas coisas» que eram as danças e as melodias, tudo junto para que a nossa época melhor reflicta sobre si, melhor compreenda as que a antecederam e melhor prepare as que se vão seguir.

Os trajes, como as fotografias, como os riscos, são sensores vitais da nossa atenção ao mundo.

Aqui ficam estas palavras para que os sinos desta pedra as simbolizem, as esqueçam e as lembrem, as renovem. Tudo o mais que gostaríamos de dizer ficou no tempo surpreendente em que a perdemos, porque muito tinha ela para nos dar e muito mais ainda para fazer crescer e desenvolver o que já sabia: é que também ela andava a juntar trapinhos culturais sobre si.

Nem de propósito, ontem ao ler as palavras do escritor Vargas llosa, ouvi os ecos de um apelo ao nosso próprio conhecimento, quer enquanto país, quer enquanto pátria, quer enquanto indivíduos que nele nascemos e que nele temos sempre um lugar de regresso. Disse ele que «A pátria não são as bandeiras nem os hinos, nem os discursos apodíticos sobre os heróis emblemáticos, mas é antes um punhado de lugares e de pessoas que povoam as nossas memórias e as tingem de melancolia, essa sensação aconchegadora de que, não importa onde estejamos, existe um lugar aonde podemos regressar».

José Machado, 2010

1 comentário:

  1. Falaste bem Zé Machado, a Cecilia acima de tudo foi uma grande amiga, com quem podiamos contar e que por isso pudeste também contar as suas mais valias para o grupo. Também gostei de ver a lembrança de outros elementos já idos, foi bonito! um abraço do Filipe.

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